domingo, 13 de outubro de 2013
A LIDERANÇA NA ENFERMAGEM BRASILEIRA
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LIDERANÇA NA ENFERMAGEM BRASILEIRA: APROXIMANDO-SE DE SUA
DESMITIFICAÇÃO*
Célia Alves Rozendo**
Elizabeth Laus Ribas Gomes***
ROZENDO, C.A.; GOMES, E.L.R. Liderança na enfermagem brasileira: aproximando-se de sua desmitificação.
Rev. latino-am.enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n. 5, p. 67-76, dezembro 1998.
O presente trabalho tem por objetivo apreender a visão que se tem da questão da liderança na enfermagem, através da
análise crítica da literatura produzida predominantemente no Brasil sobre o tema, no período de 1930 a 1995, no sentido de
contribuir para a sua desmitificação. Partindo do pressuposto que a enfermagem é uma prática social, portanto articulada às
demais práticas de saúde, conduzimos a investigação à luz de uma abordagem histórico-social. Os dados empíricos foram
extraídos a partir dos discursos sobre o assunto ou temas afins, contidos em 14 periódicos pesquisados (sendo 12 de enfermagem),
anais de congressos, catálogos de pesquisas e pesquisadores, além de 3 teses. Para a análise dos dados seguimos uma delimitação
temporal, distribuída em quatro períodos históricos, assim estabelecida com a intenção de manter a similaridade dos discursos
peculiares a cada período. O estudo demonstrou que a questão da liderança na enfermagem vem sendo tratada na profissão de
maneira cristalizada, idealizada, envolta por um caráter mítico, contribuindo para a manutenção do status quo e para uma
certa alienação dos trabalhadores da área.
UNITERMOS: liderança, enfermagem, mito
1 - INTRODUÇÃO
Desenvolver um trabalho sobre a questão da
liderança na enfermagem constitui-se em difícil tarefa,
assim como é difícil tratar deste tema em qualquer área.
Podemos mesmo dizer que é um desafio, em virtude de
sua complexidade. Expressão de difícil e variada definição,
a liderança é retratada na literatura sob os mais diferentes
pontos de vista, cujos enfoques variam conforme a visão
de mundo e formação do estudioso, do ponto focal de sua
atenção e do interesse que move sua investigação.
A idéia, tanto da liderança quanto do líder, tem
variado ao longo do tempo, como todo processo histórico,
procurando responder às necessidades peculiares de cada
época. Só para se ter uma idéia, na antigüidade Platão
pensou o líder como um ser onisciente capaz de dar origem
ao Estado ideal, de cujo caráter e direção esse líder seria
o criador. Já Maquiavel acreditava no líder como sendo
um grande homem onipotente, cuja crença deu origem à
sua concepção do príncipe. Thomas Carlyle também
centralizou a questão da liderança na figura do líder. Ao
contrário de Maquiavel (que defendia a malícia e a força
como elementos geradores de poder, do qual a liderança
seria dependente), Carlyle concebia o líder como um
indivíduo possuidor de excepcional visão intuitiva da
realidade, diante de quem todos deviam se curvar
(JENNINGS, 1970).
Atualmente estas concepções são consideradas
ultrapassadas e a figura do líder não é mais o ponto central
das discussões, dando lugar a inúmeras teorias que foram
elaboradas na tentativa de se produzir estratégias capazes
de melhorar o desempenho dos sujeitos sociais na
condução de outros sujeitos sociais, especialmente no
interior das relações de trabalho. Estas teorias procuram
diferenciar a liderança de outros temas centrais da
administração, como chefia e gerência. Porém,
acreditamos que, concretamente, para além dos ensaios
teóricos, não parece existir diferença substancial entre
estas expressões no contexto das relações concretas de
trabalho.
* Este artigo é um desdobramento da dissertação de mestrado intitulada “Liderança na enfermagem: refletindo sobre um mito”,
defendida na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP, dentro do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Fundamental
** Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas; doutoranda do Programa
Interunidades de Doutoramento em Enfermagem (EERP-USP)
*** Professora Doutor do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo (EERP-USP)
Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199868
Diferentemente do que ocorre com a literatura
na área da administração, na enfermagem costuma-se
utilizar os termos líder e liderança com muito mais
freqüência do que chefia ou gerência, por exemplo. Na
nossa opinião, isto pode revelar uma certa rejeição a estas
denominações que se aproximam mais da visão clássica
da administração, a qual é vista por muitos como
ultrapassada e retrógrada.
Além disso, os termos líder e liderança parecem
atenuar ou amenizar uma posição e uma função que a
categoria de enfermeiros, de maneira geral, parece não
aceitar. Referimo-nos às atividades de ordem
administrativa e/ou burocrática que ocupam grande parte
do tempo dos enfermeiros, gerando queixas quanto à
indisponibilidade destes para prestar cuidados diretos aos
pacientes. E estas queixas são provenientes, inclusive,
dos próprios enfermeiros, que aparentam valorar
negativamente a atividade administrativa dentro do
processo de trabalho.
Mas, por outro lado, este pensar traz intrínseco
uma contradição: se, aparentemente, os enfermeiros
rejeitam esta condição, no contexto da divisão parcelar
do trabalho auto preservam-se de atividades de caráter
essencialmente manuais, delegando-as aos demais
elementos da equipe, “menos preparados”. Reforçando
esta idéia, citamos MENDES GONÇALVES (1994, p.
211) o qual afirma que “enquanto administradora e
executora do controle do processo de trabalho, a
enfermeira passou possivelmente a ter, na relação
hierárquica com o conjunto amplo de trabalhadores
manuais dos hospitais, um sustentáculo importante.
Talvez por motivos análogos seja tão importante
preservar-se da execução das tarefas de seus
subordinados nos Centros de Saúde, conservando
apenas áreas ‘nobres’, como o trabalho em grupo,
como possíveis áreas desejáveis de ação direta”.
As considerações feitas até o momento nos
levam a supor que a questão da liderança na enfermagem
é colocada como algo dado, supostamente inquestionável,
em que aos enfermeiros é conferido o status de líder da
equipe de enfermagem. Esta idéia é transmitida nas salas
de aula, nos programas de treinamento e aperfeiçoamento
profissional, nos livros e artigos publicados, nos congressos
e seminários das várias áreas de atuação e vai sendo
reproduzida de forma linear sem que haja uma discussão
mais profunda sobre o significado desse status e desse
comportamento.
Neste trabalho, a liderança na enfermagem é vista
segundo a perspectiva de que não é um fim em si mesma
mas, ao invés, atende a determinadas necessidades e
finalidades, presentes na atividade gerencial desenvolvida
pelos enfermeiros, cuja finalidade é organizar o trabalho
para possibilitar a prática do trabalho coletivo em saúde,
o que vem se dando também através do controle dos
agentes de enfermagem e do trabalho por eles realizado.
Intentamos ponderar a discussão de modo a
deixar claro que os acontecimentos, assim como as ações
dos agentes que integram a enfermagem, não se dão
“naturalmente” e tampouco correspondem a um
maniqueísmo intencional e sectário, mas surgem a partir
da dinamicidade intrínseca ao processo de trabalho, o qual
busca responder aos interesses e necessidades
emergentes.
Partindo destas inquietações, objetivamos
apreender a visão que se tem da liderança na enfermagem,
através da análise crítica da literatura produzida
predominantemente no Brasil sobre a temática, no período
histórico de 1930 a 1995. Partindo do pressuposto que a
visão difundida é superficial, ideologizada e acrítica,
acreditamos que este trabalho pode contribuir para sua
desmitificação, desvelando-a à luz de sua finalidade
histórico-social enquanto instrumento de controle utilizado
pelo enfermeiro no exercício de sua função gerencial.
2 - A TRAJETÓRIA PERCORRIDA
Realizamos uma pesquisa bibliográfica da
literatura produzida predominantemente no Brasil sobre
o tema, no período de 1930 a 1995, sendo necessárias
sucessivas aproximações. Numa primeira análise,
constatamos que os trabalhos publicados tendo a liderança
como tema central, além de serem em número muito
reduzido (20 no total), não forneciam subsídios para
responderem às nossas inquietações. Destes 20, 13 tratam
especificamente da liderança na enfermagem, sendo que
1 foi publicado na década de 70 e os demais após 1980.
A partir desta consideração, ampliamos o leque de assuntos
pesquisados, procurando temas afins, como supervisão,
chefia, gerência e organização de serviços, o que totalizou
118 artigos. Dentre estes, selecionamos aqueles (incluindo
os de liderança) que traziam a palavra líder ou liderança,
totalizando 85 artigos publicados em periódicos e anais
de congressos, no período em questão.
Em relação aos periódicos, foram selecionados
12 de enfermagem editados no Brasil, além da Revista
Educación Medica y Salud, de caráter multiprofissional,
escolhida devido a sua ampla circulação e por incluir os
discursos e as políticas sociais para o setor de saúde na
América Latina, e ainda a Revista Paulista de Hospitais,
pelo fato de conter um grande número de artigos da área
de administração e também trazer muitas publicações de
enfermagem.
Dessa forma, coletamos os dados em 14
periódicos, em anais dos Congressos Brasileiros de
Enfermagem, dos Simpósios Brasileiros de Comunicação
em Enfermagem/SIBRACEN e dos Seminários
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199869
Nacionais de Pesquisa em Enfermagem/SENPE. Além
destes, fizemos uso dos Catálogos de Informações sobre
Pesquisas e Pesquisadores do Centro de Pesquisas em
Enfermagem e de 3 teses que versam especificamente
sobre liderança na enfermagem ou que a trazem como
um dos pontos centrais de discussão****.
Os artigos selecionados constituíram os dados
empíricos deste trabalho e sofreram uma leitura minuciosa,
a partir da qual extraímos as falas que se mostraram
significativas para o estudo. Tais falas representam os
discursos da enfermagem nos vários momentos históricos
desde sua institucionalização no Brasil. A análise foi
realizada tendo como pano de fundo as transformações
políticas, sociais e econômicas vivenciadas pelo país, em
que procuramos visualizar a enfermagem dentro deste
contexto, procedendo da mesma forma com a questão
da liderança.
Utilizamo-nos dos acervos da Sala de Leitura
Glete de Alcântara, da Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto, na cidade de Ribeirão Preto; da Biblioteca Central
da Universidade de São Paulo - Campus de Ribeirão
Preto, bem como do seu Serviço de Comutação
Bibliográfica - COMUT; da biblioteca da Escola de
Enfermagem da Universidade de São Paulo, na cidade
de São Paulo; e, finalmente, da Biblioteca Regional de
Medicina - BIREME, na cidade de São Paulo.
Com o olhar voltado para a perspectiva históricosocial, analisamos os dados seguindo uma delimitação
temporal, distribuída em quatro períodos históricos. O
primeiro, de 1930 a 1949, com 8 artigos; o segundo, de
1950 a 1969, com 30 artigos; o terceiro compreende a
década de 70, com 19 artigos; o quarto e último, de 1980
a 1995, com 28 artigos. Esta periodização foi estabelecida
com o objetivo de manter a similaridade dos discursos
peculiares a cada período, em conformidade com o
contexto próprio a cada um destes momentos. Significa
dizer que a análise foi realizada de forma a estabelecer
relações entre o objeto do estudo e o contexto histórico,
político e social em que a enfermagem estava e está
inserida, sem qualquer preocupação com a questão
quantitativa que o estudo pudesse suscitar.
3 - RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1. As primeiras expressões do controle do
trabalho de enfermagem no Brasil (1930-1949)
Até o final do século passado, no Brasil, a
enfermagem era praticada por leigos e religiosos, sendo
exercida com uma certa independência das demais
práticas de saúde. Contudo, profundas mudanças de
ordem política, social e econômica geraram a necessidade
de se construir uma nova organização das práticas de
saúde, com o Estado assumindo o controle oficial destas
práticas.
Neste conjunto de mudanças, tanto a
enfermagem quanto a medicina fizeram parte do projeto
social da época para o setor saúde, cuja intenção era o
controle da crescente e marginalizada população urbana.
O saber e a prática de enfermagem, neste processo de
estruturação, tornam-se subordinados ao saber e à prática
médica. O cenário que se descortinava retratava um país
em transformação, aderindo tardiamente ao sistema
capitalista de produção, fortemente dependente dos países
centrais e passando do regime monárquico para o
republicano.
Em meados do século XIX dava-se início a
mudanças na estrutura econômica do país, com o
aparecimento da urbanização e do mercado interno,
abrindo caminho para a industrialização. O saneamento
das cidades torna-se imprescindível ao combate das
epidemias, prejudiciais ao desenvolvimento do comércio
externo e ao processo de imigração, o que levou o
governo republicano a esboçar, no início do século, uma
política sanitarista no sentido de combater as doenças
transmissíveis que assolavam o país, em função dos
interesses da economia exportadora do café.
Durante a década de 20, toma forma o quadro
institucional e a intenção política que apontam para a
centralização das ações de saúde em âmbito nacional,
criando-se, em 1922, o Departamento Nacional de Saúde
Pública - DNSP (SILVA, 1986). Sob a coordenação de
Carlos Chagas, o DNSP consagrou-se como uma das
tentativas de estruturação dos serviços de saúde pública,
com a função precípua de combater os freqüentes
****As teses pesquisadas foram:
01. TREVIZAN, M.A. Liderança do enfermeiro: O ideal e o real no contexto hospitalar. Ribeirão Preto, 1989. 166 p. Tese (LivreDocência) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
02. LUÍS, M.A.V. Uma situação de trabalho ou, enfermeiro, a identidade negada. Ribeirão Preto, 1991. 328p. Tese (dotourado) -
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
03. KURCGANT, P. A liderança na administração do pessoal de enfermagem segundo a percepção de enfermeiras que vivenciam
esta prática em hospital. São Paulo, 1992. 125p. Tese (Livre-Docência) - Escola de Enfermagem da Universidade de São
Paulo, Universidade de São Paulo
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199870
episódios epidêmicos que as ações campanhistas não
conseguiram debelar.
O projeto veiculado pelo DNSP propunha a
incorporação do modelo médico sanitário em vigor nos
Estados Unidos, o qual defendia a idéia de promover uma
consciência sanitária no indivíduo através do processo de
educação orientado para este fim, extensivo a toda
população (RIBAS GOMES, 1991).
É neste cenário que nasce a enfermagem
moderna no país, aqui implantada na década de 20 com o
propósito de contribuir para o projeto político traçado para
o setor saúde, o qual ia ao encontro dos interesses e do
pensamento dominantes da época, no sentido de que as
novas profissionais pudessem espalhar-se por todo o país,
“de Norte a Sul, em cada recanto da terra, visitando
todo lar pobre a fim de levar ensinamentos de
hygiene” (FRAENKEL, 1932, p. 11).
Assim, a enfermagem moderna brasileira nasce
vinculada à saúde pública, com a finalidade básica de
contribuir para o controle das epidemias, favorecendo o
controle social das doenças e dos doentes. O fato de não
haver enfermeiras qualificadas para que os objetivos do
DNSP fossem atingidos, bem como a incorporação das
ações de assistência à saúde nos moldes daquelas
praticadas nos Estados Unidos, resultou na contratação
de enfermeiras americanas para a criação do Serviço de
Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública,
cujo primeiro passo foi a criação de uma escola (mais
tarde denominada Escola Anna Nery), sob o patrocínio
da Fundação Rockefeller.
O objetivo inicial do DNSP era diplomar
enfermeiras para desenvolver ações de saúde pública,
em substituição ao trabalho das visitadoras de higiene,
entretanto isto não aconteceu. Na prática, coube às
enfermeiras as atividades de teor administrativo, apesar
da ênfase no aspecto clínico e assistencial de sua
formação. Embora a intenção inicial fosse preparar o
maior número possível de enfermeiras para atuarem na
atenção primária, a formação das profissionais se deu
marcadamente no meio hospitalar.
A literatura produzida no período histórico de 1930
a 1949 levanta a preocupação com a formação das
enfermeiras, bem como com a definição de seu papel.
Após 3 anos de estudo, as novas trabalhadoras eram
absorvidas no mercado de trabalho com a responsabilidade
explícita “de orientar os serviços de enfermagem e
mesmo de manter a ordem e o assêio das
enfermarias...” (PAIXÃO, 1947, p.24). Cabia a elas a
responsabilidade pelo controle do espaço físico, dos
doentes e dos demais agentes da equipe de enfermagem.
Sua atuação deveria estar voltada para a manutenção da
ordem, da harmonia e da organização do trabalho, de modo
a “satisfazer o médico, o que tem importância na
revelação deste para com o doente” (CARVALHO,
1947, p. 32).
Neste sentido, ainda segundo esta autora, “a
enfermeira chefe ocupa a posição chave da
instituição inteira”, podendo ser considerada a “alma
de uma enfermaria”, pois “dela depende o bom
andamennto do serviço, o bem estar dos doentes e a
satisfação íntima de quem trabalha sob sua direção”
(LEITE, 1947, p. 34). A enfermeira, então, seria um
elemento importante para “fazer funcionar” a instituição,
especialmente através de atividades de controle e
orientação dos trabalhadores, compreendidas na função
de supervisão.
Percebemos, aqui, a valorização de um
determinado aspecto do processo de trabalho em
enfermagem: o organizativo e gerencial, atrelados ao
momento mais intelectual do trabalho, desenvolvido pela
enfermeira-chefe devido a sua formação profissional, uma
vez que a maioria absoluta dos demais trabalhadores de
enfermagem não possuía qualquer tipo de qualificação
formal. À ela cabia a posição intermediária entre a cúpula
e a grande massa colocada na base da hierarquia dos
serviços de saúde. Esta posição intermediária também é
assumida perante a população. Tanto em saúde pública
quanto em serviços hospitalares, a enfermeira funcionaria
como agente controlador e aglutinador, devendo “incutir
no espírito de seus subordinados a necessidade de
cooperação no trabalho” (LEITE, 1947, p. 35).
Na década de 40, especialmente na sua segunda
metade, aumenta o interesse pelas atividades
desempenhadas pela enfermeira-chefe e pela formação
desta profissional, cuja preocupação central era o
atendimento da necessidade de preparação para o
exercício gerencial. Aqui há referência de se ter na
enfermeira um elemento líder, ou pelo menos, o desejo de
que ela viesse a ser líder. Contudo, esta liderança aponta
para um caminho um tanto cristalizado, no sentido de ser
colocada como algo posto, dado, indiscutível. Como
podemos ver no trecho a seguir, a enfermeira precisava
saber “que é considerada líder na enfermaria” e,
assim, ‘é tida como exemplo e que ficam mais em foco
os seus defeitos do que as boas qualidades” (LEITE,
1947, p. 34).
A enfermeira deveria, em seu exercício
profissional, “ter um bom plano de trabalho e uma justa
distribuição do mesmo, entre os seus subordinados.
Isto dará a todos o senso de ordem, de imparcialidade,
de segurança e cada um se compenetrará do seu
dever, cousa preciosa em uma organização” (LEITE,
1947, p. 35). O anseio era, então, de incrementar as fileiras
de enfermeiras chefes que viessem a construir uma
profissão sólida e valorizada, construção esta por elas
“liderada”. Para tanto, estratégia considerada importante
era a “seleção das alunas, procurando canalizar para
as escolas maior número de candidatas cuja
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199871
personalidade e cultura sejam um presságio de
liderança” (PAIXÃO, 1947, p. 23).
3.2. A emergência da concepção do trabalho em
equipe (1950-1969)
Em decorrência da segunda guerra mundial, em
1942 é criada a Organização das Nações Unidas (ONU)
com o objetivo de preservação da paz mundial.
Juntamente com ela, surgem outros organismos
internacionais especializados e com finalidades
específicas, entre eles a Organização Mundial de Saúde
(OMS). Em 1945, por ocasião da Conferência de Yalta,
o mundo é dividido em duas grandes direções ideológicas:
o capitalismo e o comunismo. A partir daí, instala-se o
confronto entre a União Soviética e os Estados Unidos,
as duas grandes potências representativas de cada uma
destas direções. Com a finalidade de preservar a
hegemonia entre os países capitalistas ocidentais, os
Estados Unidos passam a promover uma intensa política
de intervenção nos assuntos internacionais de tais países,
especialmente aqueles do chamado Terceiro Mundo.
Sob a justificativa de combate à fome e à miséria,
a política adotada pelo governo americano privilegia o
fornecimento de alimentos e de recursos agrícolas
objetivando o aumento de produção deste setor nos países
capitalistas periféricos, o que ajudaria a tornar as
populações resistentes às idéias comunistas (IYDA,
1994). Neste período o setor saúde recebe grandes
investimentos e cooperação de organismos internacionais
e interamericanos na América Latina. Uma das
conseqüências deste fato foi a criação dos Serviços
Cooperativos de Saúde, com a finalidade de promover
assistência de saúde nas regiões consideradas estratégicas
para o desenvolvimento econômico dos países. No Brasil,
este fato expressa-se através da criação do Serviço
Especial de Saúde Pública (SESP).
Neste período, verifica-se o aceleramento do
processo de urbanização e desenvolvimento das forças
produtivas. O discurso governamental brasileiro apontava
para a valorização do homem como parte do projeto
político de reconstrução nacional, cujos esforços se
concentram na área rural. Neste sentido, priorizava-se,
na saúde, a atenção médico-social rural e a assistência à
maternidade e à infância, a partir da década de 50.
Embora a prática de medicina preventiva tenha
sido incrementada neste período, o panorama acima
demonstrado concorreu para o desenvolvimento da
indústria hospitalar, a qual alcança um crescimento
significativo entre 1940 e 1960, contribuindo para o
estabelecimento da hegemonia da prática clínica sobre a
prática sanitária, situação que perdura até os dias atuais.
O desenvolvimento da atividade médica hospitalar, por
sua vez, provoca uma maior divisão do trabalho e o
aparecimento de novos trabalhadores da saúde,
constituindo-se numerosas especialidades e especialistas.
Acordos de cooperação bilateral entre o Brasil e
os Estados Unidos foram estabelecidos e os mesmos
previam, entre outras coisas, o intercâmbio de profissionais
entre os dois países. Tal fato possibilitou a ida de muitas
enfermeiras brasileiras àquele país para que pudessem
se especializar, assim como a vinda de enfermeiras
americanas para fins de assessoria, o que exerceu forte
influência na organização das escolas e na formação das
enfermeiras brasileiras.
A prática de enfermagem, diferentemente do que
ocorre no período anterior, torna-se predominantemente
hospitalar, como conseqüência do desenvolvimento da
medicina, do hospital, da tecnologia e das mudanças
econômicas e políticas ocorridas. Contudo, a assistência
direta ao paciente continua sendo prestada pelo pessoal
auxiliar, devido ao pequeno número de enfermeiras. Os
serviços de enfermagem eram organizados de forma a
favorecer a instituição e o desenvolvimento das atividades,
em especial aquelas realizadas pelos médicos. Neste
sentido, elas se encarregariam de “interpretar com os
funcionários as ordens emanadas da administração,
de mostrar o espírito das mesmas, de conseguir que
as aceitem e cumpram” (NOGUEIRA, 1955, p. 42).
Neste modo de estruturação dos serviços, a figura
da enfermeira ocupa papel de destaque, pois é ela a
responsável pela condução do pessoal de enfermagem, é
ela o elemento que serve de elo entre os “superiores” e
os “subordinados”. É ela quem, em cada unidade de
enfermagem, trabalhará “no sentido de conseguir ‘o
espírito de corpo’, isto é, todas as pessoas da equipe
devem ter entusiasmo por tudo o que diz respeito ao
hospital. Esse espírito somente se conseguirá se
houver bom entendimento entre a direção do hospital
e os funcionários, por intermédio dos chefes
imediatos” (NOGUEIRA, 1955, p. 42).
Pode-se dizer que o período retratado (1950-
1969), com destaque para a década de 60, pode ser
considerado o marco para a ênfase dada à questão da
liderança no exercício da enfermagem, especialmente a
partir da concepção do trabalho em equipe. Nesta
concepção, tanto a líder quanto a liderança ocupam lugares
de destaque. Porém, é interessante salientar que tanto
uma quanto a outra não parecem assumir características
diferentes nesta nova proposição; ou seja, não parece
haver uma mudança substancial na prática destes sujeitos
agora chamados líderes.
Parece, então, que é mais uma questão de retórica
e sinonímia do que de mudança efetiva, uma vez que o
trabalho da líder parece atender a mesma finalidade que
a enfermeira-chefe atenderia. A esta líder não caberia
desempenhar atividades ou seguir um plano que tenha
sido planejado e elaborado por ela e muito menos pelo
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199872
grupo, mas, na realidade, cumprir normas e determinações
pré-estabelecidas pela organização, a qual, “nada mais
espera da enfermagem que essa fidelidade a um
modêlo, a cópia o mais perfeita possível de uma
imagem pretraçada...” (ROCHA, 1962, p. 300).
Neste período continua forte a preocupação com
a estrutura do serviço, com a produtividade, com a
eficiência e com a economia de tempo e de energia,
acreditando-se que isto “reverterá em benefício do
próprio doente e do hospital, que poderá com o mesmo
dinheiro obter uma produção maior do pessoal de
enfermagem...” (CHIARIELLO & CARVALHO, 1953,
p. 190).
Neste sentido, a liderança é considerada um
instrumento importante para o desempenho de tais
atividades, as quais, acredita-se, incidem diretamente na
qualidade da assistência. A enfermeira funcionaria como
agente eficaz de manutenção da ordem pré-estabelecida,
através do exercício do controle, legitimado por sua
autoridade formal. Tal controle não diz respeito apenas
ao pessoal subordinado, mas atinge grande parte da vida
organizacional, incluindo o que se relaciona com material,
equipamentos e medicamentos.
Considerada a líder “natural” da equipe de
enfermagem, a enfermeira deveria estar preparada para
assumir o papel de condutor do grupo. Como tal, ela seria
predestinada para o exercício da liderança, não podendo
fugir ao curso regular dos acontecimentos _ que neste
caso seria o título, papel ou algo parecido _ de líder da
equipe, tão logo assumisse um serviço de enfermagem.
Então, podemos considerar que neste momento
histórico o controle desenvolveu-se sob os auspícios da
liderança. Embora tenha havido, ao nível do discurso, a
intenção de colocar a liderança como instrumento de
transformação, procurando diferenciá-la da chefia e da
gerência, esta tentativa foi tênue, quase insignificante.
Às vezes, esquivando-se um pouco do controle direto fazse uso de estratégias de manipulação, clara tergiversação
para escamotear a finalidade de seu papel.
3.3. A racionalidade administrativa e a racionalidade
clínica (1970-1979)
Neste período a América Latina é palco de
sucessivas crises econômicas, evidenciadas pelo
crescimento da dívida externa, diminuição do produto
interno bruto, redução das importações, desemprego e
diminuição dos investimentos. Na tentativa de solucionar
tais problemas, os governos latino-americanos adotaram
medidas que visavam a dinamização da economia,
reduzindo os gastos, aumentando o mercado interno,
mudando a política de comércio internacional e, por fim,
procurando fortalecer a integração dos países do
continente, iniciada na década de 60.
Do mesmo modo que no período anterior, a prática
curativa, especialmente no âmbito hospitalar, continua
hegemônica mas começa a sofrer algumas críticas ainda
na década de 70, em função do surgimento das políticas
de extensão de cobertura dos serviços de saúde das
populações das regiões rurais e marginais. Tais políticas
adquirem um caráter universal em 1977, quando a 30ª
Assembléia da Organização Mundial de Saúde (OMS)
aprova uma resolução que estabelece a “saúde para todos
no ano 2000” como uma meta de todos os governos e da
OMS, através da estratégia de Atenção Primária à Saúde.
No bojo desta nova ordem estabelecida, o Brasil
participa dos programas de cooperação e desenvolvimento
socioeconômico proposto para a América Latina, levando
a cabo várias experiências de integração das ações de
saúde, presentes também no enfoque de Planejamento
Normativo, através dos Planos Nacionais de
Desenvolvimento (PND).
As mudanças esperadas ou iniciadas no setor
saúde repercutem no aspecto educacional, gerando um
repensar na formação dos profissionais da área. Este
repensar inclui desde o barateamento dos custos de
assistência até uma reorientação da formação deste
pessoal, de forma a readequá-la procurando atender aos
pressupostos do novo modelo, bem como as exigências
econômicas daquele momento histórico.
A prática de enfermagem continua centralizada
no âmbito curativo, predominantemente hospitalar, sendo
que começam a aparecer reflexões quanto ao caráter
desta prática, que assinalam a necessidade de mudança
do enfoque administrativo para o clínico-assistencial.
Inicia-se, então, uma reorientação da formação das
enfermeiras através das propostas de reformas
curriculares visando readequar estas profissionais à
intencionalidade da atenção primária, até mesmo porque
surge a preocupação com a perda do controle que as
enfermeiras detinham sobre determinadas ações de saúde
pública, devido ao avanço do pessoal auxiliar na execução
de tais ações, especialmente as de cunho assistencial.
Vê-se, aqui, uma preocupação com a possível
perda da “liderança” da enfermeira na assistência ao
paciente. Neste sentido, inicia-se a construção de um
currículo mínimo que venha “a possibilitar o
desenvolvimento de programas que assegurem a
formação do tipo de enfermeiros de que o país
necessita, nessa sua fase de prosperidade e de
realização no campo da saúde _ um profissional
altamente qualificado, capaz de assumir o seu papel
de líder da equipe de enfermagem e de membro
eficiente da equipe de saúde” (CARVALHO, 1970, p.
27).
Embora haja todo um discurso oficial de
reorientação das práticas de saúde para a atenção primária
e, no caso da enfermagem, uma tentativa de “resgatar”
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199873
para a enfermeira a essência do trabalho de enfermagem
_ o cuidado, a realidade da prática de saúde no país
continua caracterizada pelo aspecto curativo e exercida
predominantemente no ambiente hospitalar. Na década
de 70 os serviços de enfermagem intensificam a
burocratização iniciada de forma incipiente nos anos
anteriores. Sem perder de vista os princípios basilares da
Gerência Científica e da Escola de Relações Humanas,
a enfermagem utiliza-se dos princípios da Burocracia para
fazer frente à complexidade das organizações e ao
aumento dos serviços.
Imerso na ambigüidade e contradição do discurso
das enfermeiras, o exercício da atividade burocrática é
dissimulado pela fala da administração da assistência. A
introdução das teorias de enfermagem no Brasil, no início
dos anos 70, juntamente com o pensamento emergente
na América Latina que advogava o redimensionamento
do enfoque administrativo para o assistencial, influenciam
sobremaneira o discurso da enfermagem no sentido de
se privilegiar o aspecto de sua prática relativo ao cuidado.
Neste contexto, “o fato de trabalhar em
conjunto com outros elementos, profissionais ou não,
faz com que a liderança seja, para a enfermeira, a
principal arma ou seu ponto fraco” (SECAF, 1977, p.
250). Verifica-se, pois, uma expectativa exagerada tanto
em relação ao desempenho da enfermeira, quanto às
possibilidades da liderança, especialmente levando-se em
conta a percepção que se tem acerca desta e de sua
finalidade objetiva, ambas carregadas de mitificação.
Coloca-se sob a responsabilidade da enfermeira uma
“missão” que o seu caminhar histórico ainda não permite
cumprí-la.
3.4. A enfermagem enquanto prática social (1980-
1995)
As modificações econômicas do final da década
de 70 atingiram não apenas os países da América Latina,
mas todos aqueles que contraíram pesadas dívidas,
incentivadas pelos juros baixos provocados pelos
excedentes dos países petroleiros. Tais países se vêem,
então, diante de um estrangulamento cambial, redundando
numa violenta crise econômica, financeira e social. O
Brasil foi atingido por estes acontecimentos no momento
em que procurava dar seu passo decisivo rumo à
consolidação do processo de industrialização dentro de
uma economia exportadora, frustrando a estratégia
desenvolvimentista.
No plano político, a partir de 1979, o país inicia
um processo de redemocratização após a extinção do
AI-5 pelo regime autoritário, sua principal arma jurídica
de repressão, levando a uma crescente participação
popular, culminando com as eleições diretas para a
presidência da república em 1989, depois de quase 25
anos de ditadura militar.
Integrando a dinâmica dos movimentos sociais, o
sistema de saúde brasileiro presencia grandes mudanças.
Em 1980, agrava-se a crise financeira da Previdência
Social, pondo em risco as políticas sociais necessárias ao
governo militar autoritário. Ao mesmo tempo, aumenta a
participação dos movimentos populares emergentes,
levando-os a efetuar críticas ao modelo de saúde vigente.
Os anos 80, também para a enfermagem, são
marcados por um repensar de sua prática, enquanto
prática social, articulada com as demais práticas de saúde.
Embora a visão reducionista da economia insista em
rotular este período como a “década perdida”, não se
pode deixar de reconhecer que a efervescência política,
os movimentos populares e a luta pela redemocratização
do país foram fundamentais para a construção de
pensamentos e movimentos que buscaram um caminho
rumo à transformação da sociedade e das práticas de
saúde.
Assim, nesta década, a enfermagem incorpora
ao seu discurso os pressupostos da Reforma Sanitária e
participa dos embates e lutas que garantiram a
promulgação da Lei Orgânica da Saúde em 1990. Verificase também, neste período, uma grande publicação de
trabalhos que procuram entender a enfermagem articulada
a questões mais amplas, resultando num significativo salto
teórico.
Tal avanço teórico, contudo, não tem reflexo na
prática que, assim como nos períodos antecessores
prossegue, predominantemente, na área hospitalar e na
atenção curativa. Os serviços de saúde, ao contratar uma
enfermeira, também agora, esperam que ela
“supervisione as atividades de enfermagem
executadas pelos elementos de outras categorias de
enfermagem” (MARX & SECAF, 1985, p. 66), o que
implica dizer que a atividade gerencial da enfermeira
permanece centrada no controle dos agentes de
enfermagem e do seu trabalho.
Se na década de 70 o discurso da enfermagem
procurava “resgatar” o caráter assistencial da prática do
enfermeiro, a partir dos anos 80 há o reconhecimento da
atividade administrativa enquanto instrumento de trabalho,
sem, contudo, deixar de apontar que ela tem visado “muito
mais facilitar o serviço de outros profissionais na
realização de suas tarefas na unidade de internação
do que concretizar os objetivos de seu próprio
serviço” (TREVIZAN et al., 1989, p. 17).
Os serviços de enfermagem permanecem
elegendo o trabalho em equipe como o sistema mais
“apropriado” para o desenvolvimento das ações de
enfermagem. Porém, a este respeito, ainda na primeira
metade da década começa-se a constatar que o chamado
trabalho em equipe “está longe de ser o esperado. Os
elementos participantes da equipe demonstram pouca
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199874
ou nenhuma satisfação; o paciente não é visto como
um todo e sim em pequena parcela onde cada
elemento da equipe é responsável por uma
determinada tarefa” (ÉVORA, 1984, p. 39).
Significa dizer que o cotidiano da prática de
enfermagem continua privilegiando os aspectos técnicos,
a divisão de tarefas, a fragmentação do cuidado e das
pessoas nele envolvidas, à medida que o processo de
trabalho em saúde encaminha a organização dos serviços
para a racionalidade, almejando a produtividade e a
economia. Neste sentido, o controle permanece sendo o
principal instrumento para alcançar esta finalidade,
conferindo à liderança uma dimensão importante.
O discurso oficial anunciava a importância da
liderança para que as transformações desejadas fossem
efetuadas. Os líderes, então, deveriam ser pessoas
socialmente comprometidas e com uma visão ampliada
do contexto sócioeconômico e político do qual fazem parte.
A própria Organização Pan-Americana de Saúde passa
a enfocar a questão como muito importante para o
desenvolvimento dos recursos humanos em saúde.
No caso particular da enfermagem, embora
considere-se que haja falta de liderança efetiva, também
aqui neste período, esta “liderança” permanece creditada
à enfermeira, um suposto atributo básico e inquestionável.
Este aspecto é colocado na literatura pesquisada com
uma certa regularidade e uniformidade, não sofrendo
grandes alterações com o passar do tempo, o que parece
favorecer sua cristalização nesta posição, prejudicando a
possibilidade de diálogo e de democratização das relações
entre a enfermeira e os demais agentes de enfermagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos procurando colocar, ao longo desse estudo,
a tendência da questão da liderança na enfermagem, aqui
entendida como a cristalização de uma idéia, de um
pensamento, aparentemente aceitos pela totalidade dos
trabalhadores da área, em que a enfermeira é colocada
no centro da discussão. Talvez fosse mais coerente dizer,
da falta de discussão.
Isto porque, na qualidade de mito, não se permite
diálogo nem questionamentos, é algo para ser
simplesmente aceito. Da mesma forma, ainda na
qualidade de mito, permite uma infinidade de
interpretações, originadas nas “várias correntes
determinantes do pensamento nas várias épocas”
(JABOUILLE, 1993, p. 13). Como tal, mantém um
parentesco com os modelos, em que a principal
semelhança é expressa pelo simbolismo, implicando em
sério erro a compreensão literal de ambos. Implica dizer
que o entendimento da liderança na enfermagem enquanto
fenômeno que comporta uma face mítica, necessita ser
desvelada, resgatada de seus simbolismos, para ser
compreendida na sua essência. Essa compreensão da sua
essência leva inevitavelmente ao entendimento de que
ela não é uma invenção arbitrária, mas tem uma razão de
ser.
Se a partir da década de 80 a enfermagem
nacional passa a repensar sua prática, suas dificuldades
e determinações, iniciando um processo de reconstrução
de um conhecimento que permitiu e que vem avançando
na compreensão acerca de suas finalidades enquanto
prática social articulada às demais práticas de saúde e
inserida no modo de produção capitalista, pode-se dizer
que a discussão em torno da liderança na enfermagem
não produziu avanço semelhante.
Significa dizer que a sua finalidade precípua, que
é a de controlar os agentes de enfermagem, assim como
o trabalho por eles realizado, é camuflada sob outras
supostas finalidades mais “nobres”. Neste sentido, ela
confunde-se com a gerência, embora os autores que
abordam a questão façam tentativas de diferenciar uma
da outra. É importante salientar que a partir da década
de 80 parece crescer o interesse sobre o assunto no país,
pois é a partir deste momento que se tem a maioria
absoluta dos trabalhos publicados. Embora tais trabalhos
tragam uma colaboração importante para o entendimento
da questão, sobretudo do ponto de vista teórico,
seguramente não fazem uma análise mais aprofundada
do ponto de vista crítico da sua finalidade. Com isso, ao
nosso ver, tais estudos reforçam o caráter mítico e
idealizado que cerca a questão.
A prática cotidiana do enfermeiro, contudo, e até
mesmo seu discurso têm mostrado que ambas, gerência
e liderança não diferem entre si nem em forma nem em
conteúdo. Isto significa que a questão continua a ser vista
pelos profissionais da área de maneira mítica, envolvida
por simbolismos que dificultam o seu entendimento dentro
de uma perspectiva mais realista.
Dentro dessa dinâmica, gostaríamos de destacar
algo que consideramos fundamental em toda a discussão
empreendida no presente estudo: a desconsideração dos
trabalhadores “liderados” na enfermagem. Eles são
colocados como depositários do saber, do controle e, de
certo modo, da vontade da enfermeira. Fica claro que as
relações estabelecidas entre aqueles que estão mais ao
lado do trabalho intelectual e aqueles que estão mais
próximos do trabalho manual, referem-se a relações de
(frágil) poder autoritário, não compartilhado e de reduzida
dialogicidade.
Assim, quando se fala em transformação na
enfermagem, fala-se primordialmente na atuação da
enfermeira e não se considera que a história da profissão
e sua inserção na sociedade se dão através do trabalho
do conjunto de trabalhadores da enfermagem. Em vez de
percebidos como atores sociais, portanto construtores de
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199875
sua própria história, estes agentes são, na realidade, vistos
como objetos, sujeitados a cumprir decisões, ordens e
determinações das quais não tiveram nenhuma, ou quase
nenhuma participação. Não pretendemos, com isso,
colocar as enfermeiras na posição de algozes e o pessoal
auxiliar de vítimas, mas chamar a atenção para o fato de
que não pode haver transformação possível sem a
participação efetiva desses trabalhadores.
Neste sentido, a liderança “no se refiere
simplesmente a un rasgo de carácter natural o a una
cualidad simplificada, sino que se define como el
logro de una posición que se conquista en la lucha
cotidiana por una concepción más explícita del
quehacer y del entorno” (INFANTE, 1992, p. 246).
Implica dizer que a liderança na enfermagem deve ser
resultado da luta diária dos indivíduos que a compõem,
deve ser resultado do trabalho coletivo, partilhado,
democratizado. Deve ser, fundamentalmente, resultado
da valorização e do reconhecimento de todos os atores
envolvidos no processo de construção diária do futuro.
E a construção do futuro só pode ser obtida
através de um quehacer cotidiano, reflexivo, partilhado,
democrático, um quehacer em que todos são sujeitos de
sua prática e de sua história, são construtores desse futuro.
Para tanto, faz-se necessário romper com determinadas
práticas autoritárias, rumo à construção de uma práxis,
que “é reflexão e ação dos homens sobre o mundo
para transformá-lo” (FREIRE, 1992, p. 38).
Neste sentido, é mister pensar a liderança como
um instrumento a serviço da mudança efetiva. Uma
liderança que, ao abandonar a manipulação, adota o
testemunho e a ação reflexiva como elementos de
organização dos trabalhadores. Uma liderança que, ao
não dizer sua palavra sozinha, mas em comunhão com os
outros atores sociais, não oprime, mas age em busca da
liberdade e da justiça. Uma liderança que é capaz de
reconhecer outras lideranças e, ao fazê-lo, superar o que
Paulo Freire chama de “cultura do silêncio”, a qual é
gerada nas estruturas opressoras e tem a potencialidade
de impedir que os homens se percebam como tais, em
toda sua humanidade, criadora e livre.
Essa é a prática que, no nosso entendimento, pode
conduzir os trabalhadores de enfermagem à superação
de um mito e à construção de uma práxis. Uma práxis
que pode elevar os trabalhadores de enfermagem à
condição de construtores de seu tempo, sua história, sua
vida. Uma práxis que leve ao entendimento da questão
da liderança na enfermagem não como um a priori, uma
prerrogativa da enfermeira, mas como algo a ser
construído pelo conjunto de seus trabalhadores, a partir
de seu trabalho cotidiano e da compreensão de que todo
indivíduo “ é um ‘filósofo’, um artista, um homem de
gosto, participa de uma concepção de mundo, (...)
contribui assim para manter ou para modificar uma
concepção do mundo, isto é, para promover novas
maneiras de pensar” (GRAMSCI, 1991, p. 7).
NURSING LEADERSHIP: APPROACHING ITS “DISMYTHIFICATION”
This study aims at understanding the view about the nursing leadership question, through critical analysis of the
literature produced predominantly in Brazil on this theme, from 1930 to 1995, contributing to its “dismythification”. From the
assumption that nursing is a social practice, and therefore articulated with other health practices, we conducted the investigation
under a historical-social approach. Empirical data were obtained from the discourses about the issue or related themes,
contained in 14 periodicals, from which 12 were of nursing. Besides them, we used proceedings from nursing events, as well as
research and researcher catalogs and 3 theses. We analysed data according to time delimitation, distributed in four historical
periods, intending to maintain the similarity of the peculiar discourses of each period, according to the context in these
moments. The study demonstrated that the nursing leadership question has been treated, in the profession, in an idealized,
mythical and crystalized way, contributing, thus, to the maintenance of the status quo and nursing professional’s alienation.
KEY WORDS: leadership, nursing, myth
LIDERAZGO EN ENFERMERÍA: UNA APROXIMACIÓN A SU DESMITIFICACIÓN
El presente trabajo tiene por objetivo aprehender la visión que se ha tenido sobre el tema del liderazgo en enfermería,
a través del análisis crítico de la literatura producida predominantemente en Brasil sobre el asunto, en el período de 1930 a
1950, buscando contribuir para la desmitificación. Partiendo del presupuesto de que la enfermería es una práctica social, por
consiguiente articulada a las otras prácticas de salud, realizamos la investigación basada en un abordaje histórico-social. Los
datos empíricos fueron extraidos de los discursos sobre el asunto o temas afines, contenidos en 14 revistas investigadas (siendo
12 de enfermería), anales de congresos, catálogos de investigaciones e investigadores, además 3 tesis. Para el análisis de los
datos seguimos una delimitación temporal, distribuida en cuatro períodos históricos, así establecida con la intención de
mantener la similitud de los contenidos en cada revista. El estudio demostró que la cuestión del liderazgo en enfermería ha sido
tratada en la profesión de manera cristalizada, idealizada, envuelta por un carácter mítico, contribuyendo, así, para el
mantenimiento del status quo y para una cierta alienación de los trabajadores del área.
TÉRMINOS CLAVES: liderazgo, enfermería, mito
Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 199876
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Liderança na enfermagem... Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 5 - p. 67-76 - dezembro 1998
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